Quando pesquisava a idéia de uma rede dialética, antes de conhecer os textos de Bakhtin, cheguei a construir uma argumentação de que a unidade não existe como essência do mundo real. Ela existe já como um conjunto, como unicidade, coerência, integração ou outra relação recíproca de vários elementos.
Esta é, aliás, a essência da materialidade. Toda a substância do universo é feita basicamente de uma matéria ambígua, a dualidade luz-partícula, isto é, os menores registros conhecidos da existência, que nas experiências científicas comportam-se ora como partícula, ora como luz. Isto confirma que toda matéria encontrada na natureza tem a propriedade de se dividir, de se ramificar ou pelo menos de se desdobrar, como no caso da singularidade empírica encontrada: a unidade no cosmos já é um ser pelo menos binário, quer dizer, composto. Tudo que existe nasce da composição e do desdobramento, mesmo nos seres vivos, como é o caso das divisões celulares ou da reprodução e preservação das espécies.
Tanto a palavra “dialógico” quanto o “digital” começam pelo prefixo grego “di”, que designa a duplicidade, mas isto não representa simplesmente aquilo que é duplo e se refere ao número 2. Neste caso, essas palavras contêm precisamente a idéia de algo que se torna plural, “pelo menos dois”, e se multiplica indefinidamente. Algo que não é e não permanece “uno”, mas mantém associações e relações plurais, formando uma "unidade" em certos casos. A natureza é formada por uma essência complexa, propagando-se em várias direções não lineares. O linear é que é um conceito abstrato, um esquema construído pela racionalidade do pensamento, como foi provado por Einstein. Curioso que ele veio ao Brasil em 1919, para comprovar essa parte da Teoria da Relatividade (provar a curvatura do universo, através da observação de um eclipse solar, em Sobral, no Ceará). As retas passaram a ser então aproximações, um segmento do que é no universo real uma curva. Não obstante, em nossa dimensão “newtoniana”, de referenciais mais próximos e absolutos, calculamos, conceituamos e construímos as retas.
Já as “definições” do dialógico e do digital são mais complicadas de exemplificar, que a quebra da linearidade. Primeiro, por haver certo grau de incerteza em tudo (Heisenberg), depois, pela Relatividade einsteiniana, e em seguida, pela ambigüidade da substância universal, que se seguiu ao estudo da Mecânica Quântica de Planck. Toda essa natureza complexa está presente na informação digital e nos sistemas lingüísticos. Foi isso que estudaram Foucault, Pêcheux e Bakhtin, entre outros. O inacabado, o que não é óbvio, o referente de um sujeito diante do outro (a alteridade), os jogos de significação, os conflitos ideológicos, a construção dos temas, gêneros e contextos, as imagens e efeitos discursivos, tudo isso segue direitinho os princípios básicos de tudo que encontramos no Cosmos. E isto muda a idéia central da realidade, altera a compreensão dos sistemas, transforma as estruturas do pensamento, tanto quanto fez o heliocentrismo de Galileu.
A expressão digital das coisas mostra bem o que é flexibilidade “daquilo que se desdobra”. Tudo o que vemos ou fazemos nos computadores, e hoje isto é muita coisa, se pensarmos em equipamentos de navios, aviões, automóveis, ou nas delicadas operações cirúrgicas, e mais os textos, as imagens, os sons, as músicas, os simuladores e games, toda a linguagem digital, para os computadores, para a máquina, tem apenas dois códigos básicos, o zero e o um, ativando ou bloqueando o processamento nos “chips”. A enorme diversidade digital nasce de uma combinação de zeros e uns, mas que vão se multiplicando e se desdobrando infinitamente.
O dialógico opera por elementos semelhantes, embora a “base de dados” seja infinitamente mais complexa, o corpo humano, o ser humano, a cultura das sociedades e a própria consciência. Mas poderíamos apoiar toda essa existência humana em uma base elementar parecida com o processamento dos “chips”: a linguagem. A ela corresponde o mesmo processamento de trabalho que nas máquinas se faz pelo sistema digital. Esta é a correspondência sistêmica e estrutural que se poderia estabelecer entre o dialógico e o digital. A combinação dessas duas linguagens, entretanto, quebrou a lógica anterior em um nível cultural bastante avançado, abrindo perspectivas de um novo "desconhecido" para a humanidade, a partir do século 21, da mesma forma que o trabalho de Galileu levou às Grandes Navegações no século 15, e levaram Colombo a cruzar o Atlântico. Um dos grandes avanços para o qual o mundo está se preparando é a era dos robôs, uma combinação dos dois grandes sistemas comentados aqui. Outro exemplo é o sequenciamento do DNA humano e o desenvolvimento da engenharia genética. Outro dado é a expansão da Internet nas atividades domésticas e cotidianas.
Passamos a viver no mundo digital e dialógico uma dimensão capaz de resgatar e potencializar cada uma das rupturas lógicas ocorridas em outras épocas históricas, o antes e o depois, como se fôssemos capazes de hoje viver vários tempos em um só, e de ainda projetar tempos futuros, nas formas culturais que deverão se desenvolver nesse novo ambiente produtivo. Esses são os referenciais da complexidade. Uma era de grandes avanços, mas que exige enorme responsabilidade, pois os riscos também aumentam muito.
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